domingo, 22 de agosto de 2010

Fabio Konder Comparato ao enfrentar no Surpemo a Lei de Anistia

*Texto retirado do Blog Conversa Afiada de Paulo Henrique Amorim
Fábio Comparato:
o Supremo e a Anistia
Publicado em 22/08/2010

Comparato ao enfrentar no Supremo a Lei da Anistia
O Conversa Afiada reproduz texto do professor Fábio Konder Comparato:

A BALANÇA E A ESPADA
Fábio Konder Comparato*

Tradicionalmente, a deusa greco-romana da justiça é representada pela figura de uma mulher, portando em uma mão a balança e na outra a espada. A simbologia é clara: nos processos judiciais, o órgão julgador deve sopesar criteriosamente as razões das partes em litígio antes de proferir a sentença, a qual se impõe a todos, se necessário pelo uso da força.

Entre nós, porém, a realidade judiciária não corresponde a esse modelo consa-grado. Aqui, nas causas que envolvem relações de poder, com raríssimas exceções, os juizes prejulgam os litígios antes de apurar o peso respectivo dos argumentos contradi-toriamente apresentados; e assim procedem, frequentemente, sob a pressão, explícita ou mal disfarçada, dos que detêm o poder político ou econômico. A verdade incômoda é que, entre nós, a balança da Justiça está amiúde a serviço da espada, e esta é empunhada por personagens que não revestem a toga judiciária.

O julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, concluido pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de abril de 2010, constitui um dos me-lhores exemplos dessa triste realidade.

O fundamentos da petição inicial

Na peça inicial da demanda, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao tribunal que interpretasse os dispositivos da Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Arguiu que a expressão “crimes conexos”, acoplada à de “crimes políticos”, não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão de que a conexão criminal pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas, e que ninguém em sã consciência poderia sustentar que os agentes, militares e civis, que defendiam o regime político então em vigor, atuassem em harmonia com os que o combatiam.

Arguiu, demais disso, que ainda que se admitisse ser a conexão criminal cabível entre pessoas que agiram umas contra as outras – o que é simples regra de competência no processo penal, e não uma norma de direito penal substancial (Código de Processo Penal, art. 76, I, in fine) –, essa hipótese seria de todo excluida no caso, pois os autores de crimes políticos, durante o regime militar, agiram contra a ordem política e não pes-soalmente contra os agentes públicos que os torturaram e mataram.

Arguiu, finalmente, a OAB que, mesmo que dita lei fosse interpretada como havendo anistiado os torturadores de presos políticos durante aquele período, ela teria sido revogada, de pleno direito, com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, inciso XLIII, considerou expressamente a tortura um crime inafiançável e insus-cetível de graça e anistia.

As razões do acórdão

A essas razões de pedir, a maioria vencedora no tribunal respondeu de duas ma-neiras.

O relator invocou a noção germânica de “lei-provimento” (Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos imediatos e irreversíveis. Das duas, uma: ou aquele julgador desconhece o sentido do conceito técnico por ele invocado; ou tem perfeita ciência do que significa a expressão, e resolveu utilizá-la unicamente para impressionar a platéia.

Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e provimento ad-ministrativo (em alemão, Verwaltungsmassnahme); a primeira geral e abstrata, o se-gundo concreto e específico. Foi com base nessa distinção tradicional que Ernst Fort-shoff, após a Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo crescimento do poder nor-mativo das autoridades governamentais, máxime na implementação do Plano Marshall de reconstrução da Europa, passou a denominar Massnahmegesetze normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os traba-lhos de modernização de ferrovias.

O deprimente em toda essa estória é que o Ministro relator, ao mesmo tempo em que, na esteira da Procuradoria-Geral da República, considerou enfaticamente que a anistia dos crimes cometidos pelos agentes públicos contra oponentes políticos fora um “acordo histórico”, sustentou que ele nada mais seria, afinal, do que um simples provi-mento administrativo.

De qualquer modo, pretender que a Lei nº 6.683 teve efeitos imediatos e irrever-síveis constitui grosseiro sofisma, por dois singelos motivos. Em primeiro lugar, porque a premissa maior do silogismo já é a sua conclusão (vício lógico denominado petição de princípio); ou seja, a possibilidade de se reconhecer a conexão criminal entre delitos praticados com objetivos ou propósitos contraditórios. Em segundo lugar, porque, ao assim se exprimir, o magistrado demonstrou ignorar o fato óbvio de que os alegados efeitos imediatos de uma lei de anistia não podem estender-se a crimes continuados (como o de ocultação de cadáver), cujos autores permanecem no anonimato.

A segunda via de refutação das razões apresentadas na petição inicial foi também trilhada pelo relator, neste ponto pressurosamente acompanhado pela ministra que o sucedeu na ordem de votação. Entendeu, assim, o relator de desconsiderar o teor literal do pedido formulado na petição inicial, para sustentar que a demanda não objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o que só o Poder Legislativo tem competência para fazer.

É fartamente conhecida a distinção, de que o relator do acórdão usa e abusa, en-tre norma e texto normativo. Como o hábito do cachimbo deixa a boca torta, Sua Exce-lência resolveu aplicar o discrime à própria petição inicial da demanda. A arguente, a-firmou ele, posto haver pedido literalmente ao Tribunal que interpretasse a Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais Constituição Federal de 1988, objetivou, na verdade, alcançar com a demanda uma alteração legislativa substancial. Que se saiba, em nenhum país do mundo incluiu-se na competência jurisdicional a faculdade de psi-canalisar as partes demandantes, a fim de descobrir, por trás de suas declarações em juizo, intenções recalcadas no subconsciente. Teríamos admitido isso entre nós por meio de alguma Massnahmegesetz secreta?

O realmente curioso é que nenhum dos julgadores tenha se lembrado de que, quase um ano antes, dia por dia, ou seja, em 29 de abril de 2009, o mesmo tribunal de-cidira que a Constituição Federal havia revogado de pleno direito a lei de imprensa de 1967, promulgada doze anos antes da lei de anistia. Nesse outro julgado, o Supremo Tribunal Federal declarou interpretar a lei à luz dos preceitos fundamentais da Constitu-ição Federal. Dois pesos e duas medidas para a mesma balança?

Tudo isso, sem falarmos no fato – gravíssimo – de que a decisão proferida pela nossa mais alta Corte de Justiça, ao julgar a ADPF nº 153, violou abertamente preceitos fundamentais do direito internacional.

Ressalte-se, em primeiro lugar, que o assassínio, a tortura e o estupro de presos, quando praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos, são considerados, desde o término da Segunda Guerra Mundial, crimes contra a humani-dade; o que significa que o legislador nacional é incompetente para determinar, em re-lação a eles, quer a anistia, quer a prescrição.

Com efeito, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, definiu como crimes contra a humanidade, em seu art. 6, alínea c, os seguintes atos:

“o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições, constituindo ou não uma violação do direito in-terno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em conse-quência de todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou co-nexo com esse crime.”

Essa definição foi depois reproduzida no Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio de 1946, que julgou os criminosos de guerra japoneses.

Em 3 de fevereiro e 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pelas Resoluções nº 3 e 95 (I), confirmou “os princípios de direito internacio-nal reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse tribu-nal”.

Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Re-solução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilida-de dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados.

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humanidade, e acrescentou ao elenco uma modali-dade genérica: “outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencional-mente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”. Estabeleceu como condição de punibilidade que tais atos criminosos sejam cometidos “no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer popu-lação civil, havendo conhecimento desse ataque”; o que bem corresponde ao regime político repressivo vigente entre nós entre 1964 e 1985.

Desse conjunto normativo decorre a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano. Nesse sentido, com efeito, indiretamente ofendida pelo crime é toda a humanidade. Eis porque, como dito acima, ao legislador nacional carece toda competência para regular, nessa matéria, a anistia ou a prescrição.

Repita-se que a Assembléia Geral das Nações Unidas, nas duas citadas Resolu-ções de 1946, considerou que a conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de direito internacional.

Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea, situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para declarar a inconsti-tucionalidade de leis e outros atos normativos, foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Marbury v. Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição norte-americana?

A razão desse regime jurídico diverso é que a fonte dos princípios, sobretudo em matéria de direitos humanos, não reside na lei positiva ou na convenção internacional, mas na consciência ética da humanidade. É por isso que a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros, decor-rentes do regime e dos princípios por ela adotados” (art. 5º, 2º).

No plano do direito internacional, por fim, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 53, veio dar à noção de princípio geral de direito, sob a denominação de norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), uma noção precisa, que se aplica cabalmente à repressão dos crimes contra a humanidade:

É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma nor-ma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Con-venção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu con-junto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma na-tureza.

Não foi apenas essa, porém, a violação praticada pelo Supremo Tribunal Federal contra os preceitos fundamentais de direitos humanos, reconhecidos internacionalmente.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em reiteradas decisões, já fixou jurisprudência no sentido da nulidade absoluta das leis de auto-anistia. Será preciso lembrar, nesta altura da evolução jurídica, que em um Estado de Direito os governantes não podem isentar-se, a si próprios e a seus colaboradores, de responsabilidade alguma por delitos que tenham praticado?

Pois bem, diante da invocação desse princípio irrefutável, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não se inclui nessa proibição categórica, pois ela teria configurado uma anistia bilateral de governan-tes e governados. Ou seja, segundo essa preciosa interpretação, torturadores e tortura-dos, em uma espécie de contrato de intercâmbio (do ut des), teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…

Na verdade, essas surpreendentes declarações de voto casaram-se com a principal razão apresentada, não só pelo grupo vencedor, mas também pela Procuradoria-Geral da República, para considerar legítima e honesta a anistia de assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos durante o regime militar: ela teria sido fruto de um “histórico” acordo político.

Frise-se, desde logo, a repugnante imoralidade de um pacto dessa natureza: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios inte-ressados. O relator, citando Hartmann (evidentemente em alemão), não encontrou me-lhor argumento para responder a essa objeção do que afirmar que a propositura da de-manda representara a ocorrência de uma “tirania dos valores”! É de se perguntar se Sua Excelência julga a ela preferível o deboche ético e institucional do regime político da época.

Seja como for, o propalado “acordo histórico” de anistia dos crimes atrozes pra-ticados pelos agentes da repressão não passou de uma rasteira conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. Senão, vejamos.

Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem esta-ria do outro lado? Certamente não a oposição parlamentar, pois o projeto de lei de anis-tia foi aprovado na Câmara dos Deputados (onde não havia parlamentares “biônicos”, como no Senado) por apenas 5 (cinco) votos: 206 a 201. Pergunta-se: as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram, porventura, chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo?

O mais escandaloso de toda essa farsa de acordo político é que, após a promul-gação da Lei nº 6.683, em 28 de agosto de 1979, os militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial militar aberto em consequência, vítimas e não autores! E – pasme o leitor – tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fun-damento na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como termo final do lapso tempo-ral da anistia, a data de 15 de agosto de 1979.

Tais fatos estarrecedores assinalam mais uma escandalosa contradição na leitura feita pelo tribunal dessa mesma lei.

É que o § 2º do seu art. 1º excetuou “dos benefícios da anistia os que foram con-denados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Ou seja, na interpretação do Supremo Tribunal Federal, o terrorismo, o sequestro e o aten-tado pessoal são ações criminosas, tão-só quando praticadas por adversários do regime militar, não quando cometidos pelos agentes públicos da repressão. E não se venha jus-tificar essa afirmação escandalosa, com o argumento literal de que nenhum destes últi-mos foi condenado por tais crimes, pois durante todo o regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1964, todos, absolutamente todos os governantes e seus sequazes, tanto civis quanto militares, gozaram da mais completa irresponsabilidade. Eles pairavam acima das leis e das “constituições”, que eles próprios redigiam e promulgavam.

Em suma, como salientou Napoleão – não o grande general francês, mas o dita-dor suino de Animal Farm, de George Orwell –, em nosso querido país “todos são iguais perante a lei; alguns, porém, são mais iguais do que os outros”.

Lições de um triste veredicto

Em matéria de regimes políticos, é preciso separar o substantivo do adjetivo. A oligarquia e a democracia pertencem à primeira categoria, o Estado de Direito à segunda.

Em certa passagem de seu tratado sobre a política (1298 a, 1-4), Aristóteles ob-serva que toda politéia, ou seja, aquilo que poderíamos denominar Constituição subs-tancial, deve regular três questões fundamentais: 1) quem é titular do poder supremo (kýrion), com competência para deliberar sobre o bem comum de todos (peri tôn koinôn): 2) quem pode exercer a função de governante (arkhôn) e qual a sua competência; 3) quem deve assumir o poder de julgar (ti to dikázon).

Dessas três questões fundamentais destacadas pelo filósofo, as duas primeiras pertencem ao plano substantivo, a última ao adjetivo. Com efeito, qualquer que seja o regime político – que se define justamente pela titularidade da soberania e a forma de governo –, pode ou não haver a submissão do soberano e dos governantes à ordem jurídica. Hoje, é comum presumir-se que toda democracia é um Estado de Direito. Esquecemo-nos, ao assim pensar, que a democracia ateniense, não raras vezes, descambou para a “okhlocracia” (de okhlos, ralé, populacho), onde a maioria pobre, logo após a tomada do poder, não hesitava em exilar, confiscar e, no limite, exterminar a minoria rica.

Ora, a função constitucional do Judiciário, desde sempre, consiste em ser ele o garante máximo da submissão de todos os titulares de poder – inclusive o próprio sobe-rano! – ao império do Direito. Por isso mesmo, juizes e tribunais, segundo a boa con-cepção da república romana, não têm propriamente poder (potestas, imperium). Mon-tesquieu, no famoso capítulo 6 do livro XI de O Espírito das Leis, após descrever a ar-quitetura constitucional tripartida da Inglaterra, anotou: “des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”.

Faltou, porém, dizer que se o Judiciário não tem propriamente poder – no sentido de dispor legitimamente de força própria –, ele deve possuir aquela qualidade política eminente, que os romanos denominavam auctoritas; vale dizer, o prestígio moral que dignifica uma pessoa ou uma instituição, suscitando a confiança e o respeito no seio do povo.

Sucede que neste “florão da América” o Judiciário nunca gozou da confiança popular. Em 2007, uma pesquisa de opinião pública realizada por CNT/Sensus sobre o grau de confiança das diferentes instituições, públicas ou privadas, em nosso país, reve-lou que apenas 9,5% dos entrevistados confiavam na Justiça. Juizes e tribunais só esta-vam acima dos governos (5%), da polícia (3,4%) e do Congresso Nacional (1,1%). Na-quele mesmo ano, a Associação de Magistrados Brasileiros divulgou outra pesquisa, realizada segundo critérios diversos pela Opinião Consultoria. De acordo com esse úl-timo levantamento de opinião pública, o Poder Judiciário gozaria da confiança de menos da metade da população brasileira, ou, mais exatamente, 41,8%.

Ora, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o âmbito dos efeitos da lei de anistia de 1979, além de em nada contribuir para minorar essa desconfiança popular nos órgãos da Justiça, representou certamente um golpe profundo no grau de credibilidade do Judiciário brasileiro no plano internacional, em matéria de direitos humanos.

Com efeito, de todos os paises sul-americanos, o Brasil é hoje o único que se recusa a levantar a total impunidade de governantes e seus subordinados, pelos crimes violentos praticados durante o período de regime político autoritário. Em estudo recen-te, Anthony W. Pereira mostrou como essa situação escandalosa, quando comparada com as severas condenações judiciais sofridas na Argentina e no Chile pelos governantes – inclusive ex-chefes de Estado! –, durante o regime de exceção, tem sua causa na infamante colaboração que entre nós se estabeleceu, no mesmo período, entre a magis-tratura e os chefes militares. Naqueles paises, a Justiça foi posta de lado pelos militares em sua ação repressiva. Aqui, a competência da Justiça Militar foi ampliada, para abarcar os crimes contra a ordem pública e a segurança nacional, ainda que cometidos por civis. Suspenderam-se o habeas-corpus e as garantias da magistratura, e três Ministros do Supremo Tribunal Federal foram afastados pelo então chefe de Estado. Mas o Judiciário continuou a funcionar como se nada tivesse acontecido. Estávamos numa “democracia à brasileira”, como disse o general que prendeu o grande advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou dizendo que só conhecia “peru à brasileira”.

Para que possamos, portanto, instaurar neste país um verdadeiro Estado de Direi-to, impõe-se realizar, o quanto antes, uma reforma em profundidade do Poder Judiciário.

Ela deve centrar-se na garantia de completa independência de juizes e tribunais em relação aos demais órgãos do Estado, combinada com a instituição de eficientes con-troles da atuação do Judiciário, em todos os níveis.

O costume institucional brasileiro, oriundo de uma longa tradição portuguesa, mantém a Justiça sob a influência avassaladora dos governantes. Não foi, pois, surpre-endente verificar que, no caso objeto destes comentários, a espada militar interferiu des-pudoradamente no funcionamento da balança judicial.

Importa, pois, antes de tudo, libertar o Judiciário – e da mesma forma o Ministé-rio Público – da velha hegemonia que sobre eles sempre exerceu o mal chamado Poder Executivo.

É indispensável e urgente eliminar o poder atribuido aos chefes de governo de nomear os integrantes da magistratura nos tribunais. O que se tem visto ultimamente, sobretudo no preenchimento de vagas no Supremo Tribunal Federal, é um prélio acirrado entre dezenas de candidatos à nomeação, disputando as boas graças do chefe do Exe-cutivo, sendo certo que a aprovação das indicações presidenciais pelo Senado Federal é mera formalidade. Nessa peleja pessoal, o que menos conta são os princípios éticopolí-ticos. O principal trunfo de cada candidato consiste em “ser amigo do rei”, ou pelo me-nos contar com o apoio direto de um dos próximos de sua majestade. Escusa dizer que os assim nomeados ficam sempre submetidos ao poder dominante daquele, graças ao qual passaram a ocupar o alto posto judiciário.

Ainda no campo da necessária independência do Poder Judiciário, impõe-se a eliminação, o quanto antes, da Justiça Militar, em razão de seu caráter essencialmente corporativo. Aliás, durante todo o longo período autoritário, como frisou o autor acima referido, a Justiça castrense colaborou fielmente com os responsáveis pela política de terrorismo de Estado.

Outra nefasta tradição brasileira é a irresponsabilidade de fato dos magistrados. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, os únicos controles de iure, sobre eles existentes, eram exercidos no campo penal dentro do próprio Poder Ju-diciário, por iniciativa do Ministério Público; e em matéria financeira, pelos Tribunais de Contas. Mas tais controles sempre tiveram uma eficácia muito reduzida.

A referida emenda constitucional, ao criar o Conselho Nacional de Justiça, foi um primeiro passo no sentido de se instaurar um regime de efetiva responsabilização dos magistrados. É preciso agora avançar nesse rumo, por meio de várias providências, a saber: 1) tornar o Conselho um órgão efetivamente externo ao Poder Judiciário; 2) submeter à necessária fiscalização do órgão o próprio Supremo Tribunal Federal, que permanece ainda imune a todo controle; 3) dar ao Conselho poderes de punição severa e exemplar dos magistrados que delinquem (recentemente, como se recorda, um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, julgado responsável pela venda de decisões, foi sim-plesmente aposentado com vencimentos integrais); 4) desdobrar o Conselho em órgãos regionais, de modo a dar-lhe maior capacidade de atuação local.

Tudo isso diz respeito ao controle por assim dizer horizontal. Importa, porém, instituir também uma fiscalização vertical, fazendo com que o próprio povo participe da função de vigilância da atuação do Poder Judiciário. Sem isto, com efeito, a soberania popular tende a ser, nesse particular como em vários outros setores, meramente retórica.

A Constituição do Império de 1824 tinha, a esse respeito, uma disposição avan-çada, não reproduzida por nenhuma das Cartas Políticas subsequentes. Dispunha o seu art. 157 que “por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles (Juizes de Direito) ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixo-so, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida em Lei”. Não se tem notícia do uso efetivo dessa ação popular, mas é inegável que, pelo simples fato de existir, era ela, em si mesma, um instrumento de real pedagogia política. Convém, pois, recriá-la, aperfeiçoando os seus contornos.

Além disso, seria de grande importância instituir ouvidorias populares dos órgãos da Justiça, em todos os níveis, com competência para exigir explicações oficiais sobre a atuação administrativa dos magistrados. O Judiciário tem sido tradicionalmente, aos olhos do povo, o mais hermético de todos os Poderes do Estado. É inútil procurar reduzir a desconfiança dos jurisdicionados em relação aos juizes, se entre uns e outros continuarmos a manter uma linha divisória intransponível.

Toda essa reforma institucional, no entanto, será vã, caso não logremos mudar a mentalidade de nossos magistrados, a qual, sob a aparência de fiel adesão ao princípio republicano e ao ideal democrático, permanece de fato essencialmente oligárquica e subserviente aos “donos do poder”.

Sem dúvida, temos de reconhecer que, ultimamente, algum progresso foi alcan-çado. Basta lembrar a fundação, há alguns anos, da Associação Juizes para a Democra-cia, que por sinal ingressou como amica curiae ao lado da OAB, no processo da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal. Mas não se há de ignorar que a mudança de men-talidades coletivas só se alcança por força de um trabalho sistemático e prolongado de educação: no caso, especificamente, de educação ética e política, centrada nos direitos humanos.

À guisa de conclusão

“Quem é o juiz do Supremo Tribunal Federal?”, perguntou Rui Barbosa . E res-pondeu: “Um só é possível reconhecer: a opinião pública, o sentimento nacional”.

Essa respeitável opinião, certamente válida na época em que foi emitida, já não é hoje admissível.

No início do século passado, a opinião pública era formada em grande parte, entre nós, pelas manifestações publicadas na imprensa, que não se achava, então, sub-metida a poder algum, estatal ou privado. Hoje, porém, o conjunto dos meios de comu-nicação de massa, ou seja, não apenas a imprensa, mas também o rádio e a televisão, estão sujeitos à dominação de um oligopólio empresarial, que representa um dos maiores sustentáculos do regime oligárquico. Não foi por outra razão que o julgamento pro-nunciado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da lei de anistia de 1979, salvo raras e honrosas exceções, não mereceu nenhuma reprovação no conjunto dos meios de co-municação social.

Mas há ainda outra razão para se recusar o alvitre de Rui Barbosa acima lembra-do. A partir da segunda metade do século XX, criou-se um sistema supra-estatal de pro-teção dos direitos humanos, consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido à jurisdição da citada Corte.

Temos, pois, hoje, um juiz internacionalmente reconhecido do nosso tribunal supremo. Doravante, o poder da espada já não é capaz de desequilibrar, impunemente, a balança da Justiça.

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