quarta-feira, 30 de junho de 2010

Humor como forma de racismo, uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana

Cledione Jacinto de Freitas

Parto da definição do dicionário Aurélio sobre humor definindo-o como capacidade de perceber ou expressar o que é cômico ou divertido e relacioná-lo ao racismo, na tentativa de entender se há mesmo algo de cômico ou divertido em se desqualificar o outro para obter prazer para si e para as pessoas que ouvem ou vêem.

É difícil encontrar uma razão lógica que dê conta dessa inversão de paradigmas, pois estamos nos referindo a algo da esfera dos sentimentos, das emoções, que nos afeta de diferentes maneiras ao entrarmos em contato com piadas ou músicas com conteúdo relacionado à discriminação racial ou étnica.

Não é raro encontrarmos piadas com conteúdos discriminatórios de gaúchos, portugueses, nordestinos e argentinos só para citar os mais conhecidos, tratando-os como seres inferiores, com pouca inteligência ou com homossexuais, mas sempre de uma maneira jocosa e “inocente”.

Se o ser humano se constitui através do outro, através de suas relações com o outro, será que podemos dizer que a discriminação é, também, uma faceta dessa relação? De fato as nossas relações contêm aspectos dessa dinâmica, e por isso podemos reestruturar nossas relações no sentido de mudar nossa postura, para uma postura de não aceitação do racismo, principalmente esse racismo humorístico que por ser “prazeroso”, acaba se arraigando e se perpetuando.

No racismo a nossa relação se dá através da coisificação do outro, onde nos dizeres de Martin Buber, passamos de uma relação EU – TU para uma relação exclusivista de EU – ISSO, ou seja, o outro não é mais tratado como pessoa, mas sim como coisa, objeto, perdendo suas características e qualidades humanas.

É bom destacar que esse processo de “coisificação da pessoa” ou de determinados grupos esteve presente sempre em fatos negativos marcantes da humanidade. Foi assim com os escravos em geral, quando o escravo, seja por razões de dívidas ou raça, perdia a condição de ser humano e se tornava uma coisa. Foi assim no genocídio nazista, onde o povo judeu também perdeu a condição humana, no genocídio de Ruanda, onde houve uma intensa campanha de coisificação do povo tutisis que era até mesmo classificado em rede de rádio como o inseto “barata”. Até mesmo na Segunda Guerra mundial ainda, é possível observar registros históricos em que, ambos os lados, coisificavam o seu inimigo a ponto de civis japoneses se esconderem em cavernas com medo do soldado americano que seria um demônio cruel. Logo, esse processo de coisificação, seja na forma de racismo, seja na forma de uma simples brincadeira, não pode ser tolerado tão inocentemente como ocorre de costume.

Pois se analisarmos por uma perspectiva freudiana diremos que o racismo é um misto de isolamento, racionalização, negação e projeção, onde tenho que separar de mim e colocá-lo bem distante, usar de dados científicos e técnicos para justificar minha conduta, negar que eu também sou racista e acreditar que os outros é que tem atitudes racistas, essa dinâmica também contém uma estrutura sádica obtendo prazer às custas do sofrimento alheio, mesmo que seja apenas nas representações simbólicas.

O humor racista é uma forma perversa e culturalmente aceita, se não aceita ao menos tolerada, de manifestarmos nossos preconceitos, sem sermos julgados e responsabilizados por nossas práticas, pois se o humor é bom, nos faz rir e nos estimula como vamos punir tal prática? É necessário repensar nossa atitude frente a essas maneiras camufladas de expressão do racismo, para que o humor não se torne uma tragédia.

Para encerrar recorro a Foucault que aborda o racismo como uma condição de tirar a vida de uma sociedade, entendendo com tirar a vida não só as formas diretas, mas as maneiras indiretas como expor os outros a morte, multiplicar para alguns o risco de morte, a morte política, a expulsão, rejeição entre outros.