terça-feira, 6 de julho de 2010

As marcas das ditaduras e a revelação dos sobreviventes

Carta Maior
Matéria da Editoria:
Direitos Humanos

06/07/2010


As marcas das ditaduras e a revelação dos sobreviventes

O Projeto Direito à Memória e à Verdade organizou, em Porto Alegre, o Seminário "Sobreviventes: Marcas das Ditaduras nos Direitos Humanos”, como atividade paralela ao FSM. Os sobreviventes convidados foram o jornalista Bernardo Kucinski e a atual secretária de Direitos Humanos da cidade do Recife e fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo. Não se trata propriamente de saber quem são os torturadores; o sobrevivente e os sobreviventes o sabem. Trata-se de responsabilizar, apoderar-se do sentido, desvelar o que está, ainda, nas trevas.

Katarina Peixoto

Data: 28/01/2010
"Só assim brilha a Revelação
Numa época que Te rejeitou
Teu nada é a única experiência
Que de Ti é permitida”
Gershom Scholem, em “Com um exemplar do Processo de Kafka”

“Uma sociedade com futuro é uma sociedade com memória. Não por conta do nunca mais, não, que eu não acredito nisso. Mas para que a vida em comunidade faça sentido”, disse Lilian Celiberti, na terça-feira (26), em Porto Alegre, pouco antes de Lula pegar o microfone. Lilian Celiberti, militante feminista uruguaia e uma das poucas sobreviventes da Operação Condor, sabe o que essas palavras significam.

Mas o que elas querem dizer? O que organiza a exigência da memória na vida política de um povo? Por que essas palavras fazem sentido e como se pode traduzir a clareza na face de Lilian Celiberti, quando as pronunciou, para milhares de participantes do FSM?

O Projeto Direito à Memória e à Verdade – Aos que morreram na luta por um Brasil livre – organizou o Seminário “Sobreviventes: Marcas das Ditaduras nos Direitos Humanos”, na tarde do dia 27, como atividade paralela ao FSM. Os sobreviventes convidados foram o jornalista Bernardo Kucinski e a atual secretária de Direitos Humanos da da cidade do Recife e fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo.

Quando Bernardo começou a ler o texto que preparou para a ocasião ficou dolorosamente evidente o quanto essas interrogações acima não são triviais. E exatamente por isso resplandeceram duas exigências, de natureza moral, anti-jornalísticas: não usar um gravador e não tecer anotações num caderno. A melancolia do sobrevivente é, observou Bernardo, incontornavelmente individual e em certa medida irredutível à linguagem.

Agostinho de Hipona disse que “a morte era um embaraço para a linguagem”. E o desaparecimento, o extermínio, a tortura, a transmissão perversa da culpa e a perpetuação da suspensão do luto são embaraços para o quê ou para quem? Do que se faz essa impossibilidade de consumar o luto e qual a relação desse luto em suspenso com o silêncio que não se pode traduzir? Qual, enfim, é e qual deve ser o destino da culpa?

Bernardo Kucinski é um dos sobreviventes da ditadura militar brasileira que contabiliza, dentre os seus desaparecidos, sua irmã Ana Rosa Kucinski e seu cunhado, Wilson Silva. Ambos, desaparecidos desde abril de 1974, compõem parte do “nada” de Bernardo de que o poema de Gershom Scholem nos fala, a respeito do texto de Kafka. Compõem uma parte que talvez se pudesse chamar de continuidade, de um luto sem termo inicial claro. Ele falou do silêncio de seu pai, o imigrante judeu polonês Majer Kucinski, a respeito de irmãs mortas, uma, num campo de extermínio e outra, pelas forças de ocupação nazista na França. Desta tia descobriu o nome há pouco, disse, sem saber se era casada e como vivia.

A sobrevivência parece se confundir, nas palavras que Bernardo vai lendo no microfone, com uma posição histórica. A sua mãe, Ester, também silenciara aos filhos que tinha tido toda a família exterminada pelas tropas nazistas na invasão da Polônia. E que seu tio era, junto a ela, o único sobrevivente daquele núcleo familiar desfeito para sempre. Bernardo conta que Ester morreu aos 50, de câncer, mas que tinha morrido mesmo naquele dia em que todos foram exterminados. Aquele dia em que o embaraço da linguagem se tornou um silêncio de décadas. Sobre essas coisas não se falava na sua casa.

O desaparecimento de sua irmã e de seu cunhado foi um episódio inimaginavelmente doloroso para a sua família. E parece ter sido por ocasião deste evento que Bernardo tenha explicitado o fio condutor da memória silenciada, que não aleatoriamente é o mesmo que liga as ditaduras. A culpa que guarda a pretensão da função de um predicado atemporal e intransitivo do sobrevivente foi exemplarmente apresentada, lembrou Berrnardo, em A Escolha de Sofia (William Styron, 1979). Por que o soldado alemão não matou as duas crianças, em vez de pedir à mãe que ela escolhesse, entre o filho e a filha, qual iria morrer? A despeito de quem seja esse sujeito, há um dispositivo que o ultrapassa e que opera, nessa ordem macabra, a perversidade da transmissão da culpa. A transferência da culpa para a vítima e, assim, a perpetuação do sofrimento. O destino da culpa de Sofia é o suicídio, como se sabe. O livro de Styron é obra de ficção; seu argumento, não.

O que está moralmente em jogo na exigência da verdade a respeito dos desaparecidos é o destino que essa culpa deve ter. Porque a exigência da verdade, da punição e da reparação, ao contrário da melancolia, habitam uma dimensão pública, política jurídica, estatal e histórica.

Amparo Araújo é irmã do militante, desaparecido em 1971, Luiz Araújo. Ela demonstrou como se passa da melancolia confinada e irremediavelmente confinada, ao seu contrário: a ação pública, inegociável, juridicamente consistente, politicamente honrosa, de lembrar e exigir a reparação do Estado. Amparo poderia falar durante horas e dias sobre a sua trajetória e talvez não demonstrasse com a mesma clareza como se dá essa passagem, como quando disse que tinha voltado a ter pesadelos, por ocasião da reação lacaia à criação da Comissão da Verdade. Amparo pôs a mão no peito e disse mais ou menos: “Eu sempre tive uma dor só minha, aqui no meu colo, sabe?”, disse, com a mão repousando sobre o colo. “Pois agora voltou a doer, assim, fisicamente, de novo”. Essa dor deve ser retribuída, como justiça.

Uma das lições mais elementares do direito penal é a de que a conduta criminosa é singularmente imputável. O fundamento dessa exigência de imputabilidade é o pressuposto de que todo criminoso é, antecedentemente, uma pessoa de direitos. Toda punição no âmbito estritamente penal repousa na imputação legítima de uma culpa, feita pela lei e executada pelo Estado de direito. Essa estrutura da operação punitiva não se estende aos crimes do estado, e menos ainda aos crimes contra a humanidade. A humanidade, diferentemente da vítima a, b, c, não deixa de sê-lo, não desaparece enquanto tal da mesma maneira que os indivíduos, não é singularizável. Essas considerações rudimentares de direito talvez possam ser traduzidas com a afirmação já aceita no nosso STJ, por exemplo, de que direitos inalienáveis não prescrevem, a título de combate à indigente tese de aparência jurídica de que os crimes da ditadura teriam prescrito.

Bernardo deixou claro que sabe quem são os torturadores, e é muito provável que também Amparo e demais vítimas das atrocidades da ditadura brasileira o saibam. A inversão do destino da culpa e a reparação não se situam no âmbito de uma relação comutativa, trivialmente retributiva, entre torturador e torturado, entre carrasco e cadáver desconhecido. O que faz com que, até hoje, pessoas procurem a família de Bernardo para dar pistas falsas da sua irmã, dizendo que ela está viva, morando no Canadá, por exemplo? Por que há o cuidado de reiterar a dor da perda, de cristalizar a angústia, de insistir em semear a hipótese da fraqueza, da frustração, da derrota? Se é a perversidade que explica essa conduta, e certamente o é, ela não é um traço singular, psicológico, qualquer, mas uma ação política. E histórica.

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. (...)...também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. (1)

Não se trata de saber; o sobrevivente e os sobreviventes o sabem. Trata-se de responsabilizar, apoderar-se do sentido, desvelar o que está, ainda, nas trevas. Para que a tortura e a corrupção deixem de ser condição ordinária nos procedimentos investigatórios e no interior das penitenciárias. Para que a vida em sociedade faça sentido. Não é, como disse Lilian, para que nunca mais aconteça, exatamente; mas porque as repetições de tragédias e da barbárie nunca careceram de fiadores entusiasmados e eles seguem insistindo na transmissão e perpetuação do sofrimento.

É para que aquilo que aconteceu faça sentido hoje, na nossa democracia, na nossa memória, no nosso cotidiano irrefletido. O paradoxo de dissolver a culpa e a responsabilidade no pântano das defesas delirantes “anti-revanchistas” se torna: ninguém tem culpa, porque todos são culpados, como lembrou Bernardo, no fim de seu depoimento. Os que tombaram na luta pela democracia só estarão seguros, enquanto mortos, se a democracia for uma experiência permitida.

(1) Trechos da Tese VI, das Teses sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin. In: Aviso de Incêndio – Uma leitura das Teses “Sobre o Conceito de História”, Michel Löwy. Tradução das Teses: Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, São Paulo, SP, Boitempo Editorial, 2005.

PDH3: só ampliação do debate pode vencer a disputa ideológica

Carta Maior
Matéria da Editoria:
Direitos Humanos

06/07/2010


PNDH 3: "só ampliação do debate pode vencer disputa ideológica"

Em palestra realizada em São Paulo, Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos afirmou que a polêmica em torno do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos revelou a permanência de um forte pensamento reacionário no país. Para ele, somente a mobilização em torno da defesa dos direitos humanos pode garantir a efetiva criação da Comissão da Verdade. "Que as pessoas sigam defendendo o golpe de 64 faz parte de uma sociedade democrática. Não dá para proibir que pensem que o regime foi bom. O que não podemos aceitar é a conivência com os crimes, com o ocultamento de cadáveres, com a tortura sistemática"

Bia Barbosa

Data: 24/02/2010
Visivelmente emocionado, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), participou na noite de segunda-feira (22), em São Paulo, de um debate promovido pela Casa da Cidade sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos-3. Depois de uma explanação de mais de uma hora, onde relatou em detalhes todo o processo de construção e negociação do PNDH-3 com a sociedade civil e dentro do governo federal, Vannuchi discutiu com um auditório lotado os principais desafios para a implementação do Programa no próximo período. E afirmou que a disputa ideológica em torno do Programa só será vencida junto à sociedade brasileira se o debate for ampliado fortemente Brasil afora, já que ainda persiste no país um forte pensamento conservador, não superado nesses mais de 21 anos de constituição democrática.

"Nunca desconfiei que haveria tamanha pancadaria. É possível que isso tenha acontecido porque as primeiras críticas vieram de dentro do governo [em referência ao ministro da Defesa Nelson Jobim]. Aí a oposição aproveitou e colocou uma cunha na discussão. Também é possível que alguns trechos do programa precisassem de redações melhores. Mas fiquei triste e surpreso de pensar que havia um pensamento conservador reacionário no país.", disse Vannuchi. "Que as pessoas sigam defendendo o golpe de 64 faz parte de uma sociedade democrática. Não dá para proibir que pensem que o regime foi bom. Mas o que não podemos aceitar é a conivência com os crimes, com o ocultamento de cadáveres, com a tortura sistemática", completou.

Na avaliação do ministro, mesmo com a formação do grupo de trabalho que enviará ao Congresso Nacional o projeto de lei para criar a Comissão da Verdade, não há nenhuma garantia de que o órgão seja efetivamente criado. "Somente se tivermos capacidade e energia para ampliar os debates vai sair uma Comissão da Verdade", afirmou.

Nesta semana, os integrantes do GT participarão de uma oficina com especialistas da ONU e da OEA (Organização dos Estados Americanos) para discutir a base constitucional da Comissão da Verdade e conhecer experiências de outros países que passaram por processos de reparação. Vannuchi também foi convidado para debater o tema em cinco comissões do Senado e na Câmara dos Deputados. "Vou passar março e abril exercitando paciência e serenidade. Mas já há um movimento permanente de defesa do Programa. Das 521 ações propostas, as críticas não ultrapassam 21. Então há um amplo consenso que mostra que temos que seguir adiante", acredita.

Entre as estratégias para o debate público sobre o Programa de Direitos Humanos está a adoção de uma linha de não criticar o conjunto das Forças Armadas, e sim defender a investigação do máximo possível de atores envolvidos na ditadura militar, e adotar falas positivas em relação à corporação militar.

"Achar que as forças armadas pensam só o que pensa o Clube Militar é um erro. No Clube está o pessoal de pijama, que participou diretamente daquilo tudo. Por outro lado, em 21 anos, eles não se envolveram em nenhum movimento golpista. Então me preocupo em sinalizar uma mão estendida, acreditando que o país tem que reconhecer suas forças armadas, mas que para isso é necessário abrir os arquivos da ditadura e pedir perdão", acredita Vannuchi. "Com a polêmica da Comissão da Verdade, acabamos desnudando um problema mais importante: qual a transição que as forças armadas fizeram para um programa democrático em nosso país? Agora em março, por exemplo, se forma na escola de Agulhas Negras a turma General Emílio Garrastazu Médici. Este é um problema da democracia do Brasil que esta crise ajudou a ficar mais claro", disse.

Na avaliação de Paulo Vannuchi, nas últimas décadas a esquerda não percebeu que as forças armadas são um tema muito importante para ficar apenas nas mãos dos militares. É algo que precisa envolver sociólogos, historiadores, profissionais de relações internacionais, acredita. "Por isso, é hora de ter humildade para reconhecer erros e serenidade para assegurar uma dose dez vezes maior de firmeza e determinação para defender o Programa, que é algo bom para o país".

Mudanças em curso
Para além da criação da Comissão da Verdade, entre os erros que o ministro pretende corrigir estão temas como a legalização do aborto e a proibição de símbolos religiosos em prédios públicos. Também esta semana Vannuchi se reunirá com o movimento de mulheres para construir um acordo em torno da redação do aborto. A idéia é aprovar um texto que amplie as possibilidades de exercício do abortamento legal, considerando a questão da saúde pública, mas sem passar pela "autonomia da mulher para decidir sobre seu próprio corpo", já que aí há uma discordância do próprio Presidente Lula. Sobre a questão dos símbolos religiosos, o ministro acredita que a diretriz do Programa que pretende impedir símbolos religiosos em prédios públicos foi descuidada e deve ser alterada.

Já a crítica dos ruralistas ao PNDH-3 é tida como "desproporcional e mentirosa". "É só ler o Programa. Queremos a garantia que, nos processo de reintegração de posse, ou seja, depois que o direito à propriedade já foi defendido na Justiça, que não haja mortes. O que dissemos é que o direito à propriedade não pode ser absoluto, pairando sobre o direito à vida", explicou. "A questão da união civil homossexual e da adoção por casais homoafetivos também é uma posição da qual não se pode permitir recuo. Estamos falando de um preconceito que, daqui 20 anos, será visto como piada", afirmou.

Com esta posição, tudo leva a crer que a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil manterá suas críticas ao PNDH-3, o que não parece preocupar Vannuchi. "A CNBB não vai me apoiar de jeito nenhum. Esta não é a igreja de Dom Paulo Evaristo Arns. É uma igreja muito parecida com a de 1964. Alguns bispos chegaram a fazer uma nota odiosa dizendo que o Programa “ameaça retomar conflitos sociais que a Lei de Anistia apagou”. Foram contra até a busca dos corpos dos desaparecidos, um direito sagrado que foi imortalizado na imagem de Maria, da Pietá, carregando seu filho", criticou.

A idéia, por ora, é fazer o menor número de alterações possíveis no Programa. Uma versão sinalizada pelo próprio ministro com os pontos polêmicos já está nas mãos do Presidente Lula, que deve debater o tema nos próprios dias com Vannuchi. Somente na semana passada Lula se posicionou de forma mais contundente em defesa do PNDH-3 e da permanência do ministro em seu governo, depois de todo o conflito criado entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Ministério da Defesa e o Ministério da Agricultura.

"O apoio do governo demorou. Foi muito tempo apanhando sozinho. Hoje é o primeiro dia em que falo sobre este tema depois de uma legitimação pública do Programa, que não veio do governo. Recebi o apoio institucional do PT, que em seu congresso aprovou por unanimidade uma moção de apoio incondicional ao PNDH-3", declarou.

No dia 8 de março, a SEDH lançará o terceiro exemplar de uma coletânea sobre o direito à memória, contando histórias das torturas e violações de direitos das mulheres durante a ditadura militar. Já foram lançados livros sobre as violações contra os negros e as crianças.

"Vou entregar pessoalmente um exemplar ao Jobim para ver se essas histórias deslocam um pouco sua visão", brincou Vannuchi. " O que está proposto aqui é a vida da democracia, a idéia de incorporar um Brasil de todos", concluiu, aplaudido longamente de pé pelos presentes.

Democracia brasileira depende da punição de crimes da ditadura

Carta Maior
Matéria da Editoria:
Direitos Humanos

06/07/2010


Democracia brasileira depende de punição de crimes da ditadura

Seminário sobre o direito à memória e a verdade discutiu os mitos que conduzem à impunidade, até hoje, dos responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar. Para o sociólogo Boaventura de Souza Santos, se esta punição não vier, o país jamais sairá da atual fase de transição democrática. “Não nos iludamos, a democracia não está consolidada no Brasil”, afirmou.

Bia Barbosa

Data: 29/01/2010
Recontar a história, para que o que aconteceu não se repita. Este é o principal objetivo dos milhares de brasileiros e brasileiras que lutam pelo direito à memória e à verdade aos que morreram durante a ditadura militar ou seguem desaparecido mais de vinte anos depois. Manchete nas páginas da imprensa, o tema vem sendo debatido no país, onde muitos defendem que não se deve mexer no passado. Num seminário realizado nesta quinta-feira (28), durante as atividades do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, promotores e sociólogos debateram a importância de garantir este direito para que o país ultrapasse uma fase ainda de transição para a democracia. E, com propriedade, desconstruíram os argumentos míticos que há décadas conduzem à impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade.

Uma das idéias centrais no debate público sobre o tema é que os crimes da ditadura prescreveram, ou seja, passou-se muito tempo e agora não há mais como responsabilizar eventuais culpados. Desde o início do século passado, no entanto, crimes como tortura e desaparecimento forçado, quando praticados pelo Estado de forma geral e sistemática contra grupos sociais, são considerados crimes contra a humanidade. Em 1914, entrou em vigor uma convenção das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil, que estabelece este conceito. Décadas mais tarde, outra resolução da ONU definiu que crimes contra a humanidade não prescrevem.

“Ou seja, na esfera internacional e também no Brasil, que trouxe esses conceitos para o seu ordenamento jurídico, esse argumento da prescrição não se aplica. Nem leis, nem decisões de tribunais e governos de países podem impedir que se investigue e puna aqueles que praticaram esses crimes com base nesta justificativa”, explica Domingos Sávio da Silveira, procurador da República.

O segundo argumento-mordaça para impedir a garantia do direito à memória e à verdade é que a Lei de Anistia pacificou o país, e que não há por que ser revanchista e voltar ao conflito. Na verdade, a Lei 6683, de 1979, anistiou os crimes políticos, eleitorais e conexos, dirigida aos que haviam sido perseguidos politicamente pela ditadura.

“Esta não era uma lei para os militares, ou vocês acham que eles iam admitir na lei que tinham torturado e matado nos porões? O poder não confessa o que praticou às escondidas. Esta foi uma lei unilateral, apresentada como pacificadora, para se tornar uma lei do esquecimento”, acredita Silveira. “A anistia aqui surgiu para que não houvesse acesso aos nomes de quem se envolveu nisso. Mas o Brasil precisa saber tudo. Nome completo e circunstâncias”, acrescenta o jornalista e sociólogo Marcos Rolim.

Em busca da democracia
O problema é que o país vive entre aqueles que não podem esquecer e aqueles que não querem lembrar. Para Boaventura de Souza Santos, professor catedrático da Faculdade de Economia e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, Este é um momento difícil da transição da ditadura para um regime democrático.

“As vítimas e familiares e aqueles que lutam pela democracia sabem que, se esquecermos, isso pode voltar amanhã. E aqueles que não querem lembrar porque tem muito poder hoje, vivem uma vida que não querem abandonar. É por isso é tão difícil lembrar que nenhuma Lei de Anistia pode abranger crimes contra humanidade. E por isso esta é uma luta política do mais alto nível. Se a interpretação que for dada à Lei de Anistia no Brasil decidir apagar os crimes contra a humanidade, podemos dizer que a ditadura ainda está presente, pela incapacidade de este país saber a verdade”, acredita Boaventura.

Trata-se, portanto, de uma transição que precisa democratizar o passado, para democratizar o presente e o futuro. E uma transição que tem enfrentado resistências de várias formas, como a atuação dos próprios meios de comunicação neste debate.

“Quando os grandes veículos de comunicação reintroduzem em suas manchetes o termo pelo qual a ditadura designou a esquerda armada – “terroristas” –, forma-se um senso comum de que as duas partes cometeram crimes. E esta é uma disputa fundamental a ser travada. Pode-se fazer muitas críticas práticas e procedentes à esquerda que pegou em armas e praticou atos que não são sustentáveis do ponto de vista dos direitos humanos, mas do ponto de vista histórico, é inaceitável chamar essas pessoas de terroristas. É preciso lembrar que um dos princípios mais consagrados pelo liberalismo político no campo jurídico é o direito e o dever à resistência armada aos regimes autoritários”, acrescenta Marcos Rolim.

Ao final, na avaliação dos participantes do seminário, tal utilização de conceitos e princípios leva a uma compreensão perversa e que impede o direito à memória e a verdade. “Dizer que o direito à verdade é revanchismo é uma perversão do conceito de justiça. Sem contar que hoje são eles que se dizem defensores da liberdade de expressão. Essa era uma bandeira das forças progressistas, e hoje aparentemente é deles. Há, portanto, uma conexão e uma aliança sinistra entre quem tem privilégios hoje e quem tinha antes. E por isso uma luta pela memória é uma das mais democráticas que podemos viver”, afirma Boaventura.

Ficou claro, ao final do debate, que o mais importante é reescrever o passado. Não para punir criminalmente – apesar de isto ser absolutamente viável – mas para recompor a história do país e completar o quebra cabeça da nossa história. Se a verdade, como lembrou Rolim, é uma construção subjetiva, que pode ganhar novos significados a depender da interpretação e dos valores dados a cada fato, os movimentos que constroem as lutas do Fórum Social Mundial têm pela frente o esforço de decidir qual a memória coletiva sobre a ditadura militar que querem para o Brasil. Do contrário, sem jogar luzes sobre a tortura do passado, seguiremos longe da tarefa de banir, de vez, a tortura das práticas dos agentes estatais brasileiros e de conquistar, finalmente, a democracia em nosso país.